Cresce a cada dia o número de crianças deixadas à própria sorte por causa do vício de quem deveria cuidar deles.
Gabriel poderia ser mais um adolescente de 14 anos feliz, cujas responsabilidades são apenas frequentar a escola e jogar bola com os amigos. Mas seu corpo esguio - que aparenta, no máximo, o de um menino de 9 anos - e os olhos grandes, cheios de lágrimas, revelam as dores de quem lutou contra a violência dentro de casa desde cedo. Sua mãe é usuária de crack e há cinco anos abandonou o garoto e seus três irmãos - de 13, 10 e 8 anos - por conta do vício.
Não bastasse o abandono, Gabriel guarda na memória fatos que vão marcar para sempre sua vida. "Uma vez botaram fogo na minha casa e disseram que fizeram isso porque minha mãe mexia com coisa errada", conta o menino, que cursa, hoje, a 3ª série do ensino fundamental, com cinco anos de atraso
Gabriel e os irmãos nunca usaram drogas, mas são tão vítimas do crack quanto seus pais. Como eles, cresce a cada dia o número de crianças deixadas à própria sorte por causa do vício de quem deveria cuidar deles. Nos últimos meses, por exemplo, o número de denúncias de maus-tratos e negligência por parte de pais viciados em crack ao Conselho Tutelar de Vitória aumentou em 50%. Quando não são abandonadas, elas acabam fugindo de casa, por não aguentarem a rotina de violência.
Gabriel, apesar do corpo franzino, já se viu diante de responsabilidades de gente grande. Um dia, deixado mais uma vez sozinho em casa com os irmãos, pulou a janela, numa noite fria, para tentar encontrar a mãe na rua e fazê-la voltar para casa. O menino conta como era:
Inúmeras foram as vezes em que o menino viu a mãe, o padastro e outros adultos fumando crack dentro de casa. Ou que os traficantes bateram à porta, fazendo ameaças de morte para receber o dinheiro das pedras. Mesmo assim, ele conseguiu dizer não quando amigos da mãe lhe ofereceram a droga. E transfere para os irmãos a esperança. "Hoje eu moro com os meus irmãos aqui no abrigo, e estamos felizes juntos. Sentia muita falta deles. Nem sinto mais saudade da minha mãe. Já vi que não vale mais a pena viver com ela."
A realidade dura também não acabou com os sonhos do menino - ele não sabe se quer abrir uma academia de dança ou trabalhar como caminhoneiro. Mas seus olhos brilham quando fala do futuro. Ele quer o básico: trabalhar, ganhar dinheiro e ter uma família. "Quero andar à vontade, dirigir. Posso até ser guarda de trânsito. Mas agora queria ser adotado com os meus irmãos para que a gente possa ter uma família de verdade", diz, abrindo um tímido sorriso.
De irmã a mãe
A história das irmãs Juliana, de 12 anos, e Clara, 9, também é marcada pelo vício da mãe no crack. As meninas moravam com uma vizinha, quando, há dois anos, um conselheiro tutelar esteve no local e levou as duas para um abrigo. Ambas não tinham nem certidão de nascimento. O documento só foi feito este ano, depois de a escola em que estudam denunciar o fato ao órgão.
Antes disso, a rotina da filha mais velha incluía cuidar da irmã e fazer bicos de garçonete em um bar. "Quando minha mãe não deixava a gente em casa sozinhas, mandava a gente pedir dinheiro para ela comprar droga. O que sobrava ela nos dava para comprar bala", conta Juliana.
Com as bochechas vermelhas e uma cara sapeca, Clara conta que muitas vezes sentia vergonha de ter que pedir dinheiro na rua. "Mas aí minha mãe falava que vergonha era matar e roubar." Elas chegaram a vender paçoca nos semáforos, debaixo do sol escaldante ou de chuva forte, e sem direito a sentar para descansar.
Hoje, a mãe vive nas ruas. Faz tempo que Juliana e Clara não a veem. A mais nova não consegue disfarçar a falta que ela faz, e lamenta, conformada:
Enquanto isso, Juliana, com seus 12 anos, tenta fazer o papel da mãe que elas não têm. Era ela que cozinhava quando a mãe saía de noite e não voltava.
Para conseguir dinheiro para comprar crack, a mãe chegou a obrigar Juliana a trabalhar em um bar, "de garçona", como ela conta. Além de fritar salgadinhos e servi-los, com apenas 10 anos, a menina enfrentou situações constrangedoras nas mãos dos clientes do bar. Não faltaram propostas de sexo.
O abuso sexual de crianças que têm pais viciados é comum, como explica Marcelo Nolasco, titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). Em abril, uma menina de apenas 4 anos foi abusada pelo companheiro da mãe, também usuário de crack. "O que mais choca é que a mãe da criança estava grávida novamente, de 7 meses", conta o delegado.
A exposição ao risco acaba cobrando seu preço. Foi trabalhando em bares que Juliana começou a experimentar o álcool e o cigarro. "Já bebi, já fumei e peguei maconha escondido da minha mãe uma vez. Queria saber como era. Achei legal, fiquei tonta... Mas nunca fiz isso na frente da minha irmã e não vou deixar ela fazer isso nunca", diz Juliana. Afinal, ela é a "mãe" de Clara.
A juíza Gladys Henriques Pinheiro, da 1ª Vara da Infância e Juventude da Serra, conta que muitos dos adolescentes que estão respondendo a processo na Justiça têm famílias envolvidas no tráfico de drogas ou são órfãos. "Essas crianças já são desestruturadas desde novas. Hoje, mais de 50% dos processos são por causa de tráfico", ressalta.
Muitos dos pais desses adolescentes infratores são dependentes químicos. E, de acordo com a juíza, são poucos os casos de pais que superaram isso e que querem reaver os filhos. "A gente fica feliz quando isso acontece, mas sabe que essa não é a realidade. Além disso, tem a questão dos maus-tratos, do abuso, da negligência, e do álcool."
Resgatando sonhos
O pior é que essas crianças sentem, além do abandono, culpa por não terem conseguido cuidar de quem deveria cuidar deles - os pais. Também abandonada pela mãe, Amanda, 11, sonha ser adotada por uma família da Itália, mas não planeja ter filhos. "Dá muito trabalho. Vou pensar só no meu futuro. Quero estudar e ser médica", diz.
A assistente social Leidiane Santana Rocha, que trabalha em um abrigo na Serra, ressalta que a maioria dos internos do local pensa da mesma forma:
A conselheira tutelar Janine Barbosa conta que depois que o Ministério Público baixou uma carta recomendatória para que os hospitais informem aos conselhos tutelares quando as mulheres grávidas viciadas em crack ou em outro tipo de droga forem dar à luz, o número de notificações aumentou. "Isso é bom, porque, se fizermos essa abordagem logo no início, as crianças podem sofrer menos."
Um desses casos aconteceu em setembro. Uma mulher de 32 anos, usuária de crack, deu à luz a uma criança e, depois, descobriu-se que ela já tinha um filho de 3, que era cuidado pela família. O recém-nascido foi levado para um abrigo da prefeitura depois que os familiares disseram que não tinham condições de cuidar dele também. Hoje, a mãe está presa, cumprindo pena por trabalhar para o tráfico. Quem sabe esse bebê não tenha um destino diferente?
*Os nomes dos entrevistados são fictícios para preservar suas identidades
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