Autor de uma das poucas pesquisas sobre o crack no Brasil, o médico Ronaldo Laranjeira critica a falta de ação das autoridades em relação à droga
Veja - Vivian Carrer Elias
Ronaldo Laranjeira: "Essa ideia de focar nas drogas legais para combater as ilegais faz sentido quando falamos de um ponto de vista global, mas é diferente quando discutimos o crack, que ganhou vida própria no Brasil" (Agliberto Lima)
O crack é uma droga sobre a qual muito se fala, mas pouco se sabe. Órgãos antidrogas vêm sendo criados e tímidas ações vêm sendo feitas, mas a aparente falta de resultados pode ser atribuída ao fato de se basearem no senso comum e não em dados oficiais.
Esse é um dos principais problemas apontados pelo médico Ronaldo Laranjeira, especialista em dependência química, professor da UNIFESP, diretor do INPAD (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e outras Drogas) e coordenador do UNIAD (Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas). Ele foi autor de uma das poucas pesquisas sobre o crack no Brasil. Seu estudo acompanhou 131 dependentes de crack durante 12 anos. Ao final desse período, cerca de 20% continuavam a usar a droga, 10% estavam presos e 25%, mortos. Não há pesquisa semelhante de âmbito federal. Não se sabe, até hoje, por falta de pesquisas e iniciativas do governo federal, quantos usuários de crack há no Brasil.
Para Laranjeira, o crack é muito mais do que uma consequência do uso de álcool, como muitos pensam. Ele vê a produção e a distribuição da droga como fatores a serem combatidos para uma prevenção adequada. Além disso, acredita que a droga ganhou "vida própria" no Brasil, onde é consumida tanto nas grandes metrópoles quanto em remotas cidades do interior, e cujo consumo aumentou em proporções maiores do que o do álcool. Ele falou com o site de VEJA sobre o assunto.
Recentemente, o governo de São Paulo lançou mais uma unidade antidrogas, o COED (Coordenação de Políticas sobre Drogas), criada com a prioridade de combater as drogas lícitas. O álcool e o tabaco são realmente a porta de entrada para o crack? A política brasileira tem doses de senso comum. Essa ideia de focar nas drogas legais para combater as ilegais é um conceito que vem de países desenvolvidos, que realizam muitos estudos para dizerem isso, e faz sentido quando falamos de um ponto de vista global. Mas é diferente quando discutimos o crack, que ganhou vida própria no Brasil. Não podemos aplicar esse conceito ao falarmos de uma droga que ainda é pouco conhecida, pois há poucas pesquisas sobre ela no país. O álcool e o tabaco são fatores de risco para diversas doenças, e também para o consumo de outras drogas, mas não são os únicos. Por exemplo, o aumento do consumo de álcool nos últimos anos não acompanhou o de crack, e houve queda no consumo de tabaco. As drogas lícitas, portanto, não são a chave de tudo para entendermos o problema do crack. O COED tem função mais preventiva e a prevenção levará anos, enquanto o problema do crack é imediato.
Para o senhor, quais são os outros fatores que explicam essa epidemia? Eu sustento, nos últimos dez anos, a tese de que se criou uma rede enorme de varejo, e não tráfico, para a venda de drogas no Brasil, especialmente cocaína e crack. É uma rede muito bem distribuída, pois há crack tanto em São Paulo quanto no interior do Piauí. Essa rede tem autonomia própria: ela se disseminou muito rápido e a droga ficou muita barata. É um grande problema, pois envolve ampla distribuição, droga barata e muitas pessoas que a consomem, pois os usuários se tornam dependentes. Outro grande problema, em minha opinião, está na produção da droga em países vizinhos: 100% da cocaína consumida no Brasil vem da Colômbia, do Peru e da Bolívia, e 80% de toda a cocaína produzida por esses três países vem para o Brasil.
O que vem sendo feito pelo governo em relação a esses problemas? Em relação ao crack, nada está sendo feito no momento, não há políticas concretas. Em São Paulo, onde há um grande número de usuários e onde fica a cracolândia, a prefeitura não estabeleceu uma política de urgência para tratar o problema e não ouviu ninguém, nem a academia e nem os familiares de dependentes químicos, que são muito desamparados pelo poder público. É uma vergonha que São Paulo permita a cracolândia por tanto tempo, não foi feito quase nada e as ações realizadas foram tímidas e sem continuidade. O governo federal também não investiu em pesquisas sobre o quadro do crack e nem em políticas contra o problema com as fronteiras. A Secretaria Nacional Antidrogas promete há tempos realizar um grande estudo, mas até agora nada foi publicado. Não sabemos, por exemplo, o número de usuários de crack no país e nem como funciona essa rede de distribuição da droga. Se formos esperar dinheiro do governo federal, não teremos nada. Devemos esperar melhoras do governo estadual. Ele tem dinheiro pra investir em saúde e deve priorizar tratamentos de crack e álcool. É isso que defendo e proponho junto ao Conselho Consultivo de Saúde Mental da Secretaria Estadual da Saúde, do qual faço parte.
Como funciona esse Conselho Consultivo? Nós somos um grupo que oferece ao governo de São Paulo, desde a gestão de José Serra, nossa consultoria com base em nossos conhecimentos técnicos. Não sou funcionário do governo, é um trabalho não remunerado, mas me sinto na obrigação de oferecer os conhecimentos que tenho em trinta anos de experiência nessa área para que sejam colocados em prática. Esse conselho cobre saúde mental, mas a prioridade é álcool e drogas, especificamente a parte de tratamentos. Estamos finalizando uma proposta para um projeto de criação de novos leitos no estado e vamos apresentar a sugestão para o governador dentro de algumas semanas. Espero que o governador considere, mas a sinalização que nós temos da Secretaria da Saúde é positiva.
A proposta de vocês envolve a criação de quantos leitos? Nossa proposta envolve quase 300 novos leitos de qualidade para tratamento de dependência química no estado de São Paulo, e acreditamos que seja possível começar o ano de 2012 já com eles. Deles, 150 podem ser instalados rapidamente na capital, no Hospital da Água Funda, um hospital fechado que fica em uma área muito privilegiada, ao lado do jardim botânico e do zoológico. Em três meses, acredito que eles possam ser construídos. Os outros ficariam em outras cidades do estado.
Quanto custa, para o governo, cada leito de tratamento para dependentes químicos? Depende. Esses leitos que propomos no Hospital Água Funda custariam entre 150 e 170 reais por dia e por paciente. Minha equipe tem uma unidade de internação em São Bernardo do Campo que eu acho que tem um padrão melhor, pois todos da equipe têm curso e especializações em dependência química, o que não ocorre em nenhuma clínica do Brasil. São 70 leitos, 40 para homens e 30 para mulheres, e cada um custa 170 reais por dia e por paciente. Temos outra unidade em Itapira, interior de São Paulo, com uma equipe um pouco menor e 95 leitos. Custam 95 reais por dia, por paciente. Esses valores são pagos pelo governo do estado.
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